Debatido durante todo o dia e aprovado no final da noite de ontem por congressistas americanos, o polêmico projeto de reforma do sistema de acesso à saúde nos Estados Unidos reforça a presença do Estado em um setor que representa 16% do Produto Interno Bruto (PIB)
Fonte: Site Zero Hora - 22 de março de 2010.
Além de mudar o modo de acesso dos americanos à assistência médica, o projeto de reforma da saúde aprovado ontem pelo Congresso dos EUA marca uma alteração substancial do ponto de vista ideológico. O programa alinhavado pela administração de Barack Obama, que foi votado pouco antes da meia-noite, representa uma intervenção do governo em parte importante da vida e da economia americana – o que não é pouco para os padrões liberais dos EUA e deverá pautar as próximas eleições.
O gasto de todo o país em saúde, incluindo fontes governamentais e privadas, alcança US$ 2,3 trilhões – fatia de nada menos do que 16% do farto PIB americano. Apesar disso, um número estimado entre pouco mais de 30 milhões e 46 milhões de pessoas ainda não contava com qualquer forma de assistência médica garantida. Os sem-cobertura são formados por pessoas que não se enquadram nos principais programas governamentais – que se limitam a beneficiar idosos ou a camada mais pobre da população – e não têm dinheiro suficiente para custear um plano privado.
Mesmo assim, a proposta de Obama de criar um sistema praticamente universal, capaz de atender a até 97% da população ao longo dos próximos anos, é vista com desconfiança por opositores, parte da população e até de uma fração de seu próprio partido, o Democrata. Segundo um levantamento do Pew Research Center, 38% da população se disse favorável à reforma, enquanto 62% eram contra ou não souberam responder.
– É que o projeto de Barack Obama é uma intervenção do Estado, e os americanos não têm cultura de aceitar isso – avalia o professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Paulo Visentini.
Embora a polêmica possa parecer estranha para os brasileiros já acostumados à abrangência do Sistema Único de Saúde (SUS), que instaurou no país a universalização do atendimento gratuito, Visentini lembra que qualquer iniciativa subsidiada pelo governo soa como um alarme entre os americanos. Por isso, a reforma chegou a ser chamada de “socialista” por seus detratores, termo considerado pejorativo por amplos setores do país, por aumentar a presença estatal na economia.
A despeito da polêmica, a especialista em Relações Internacional da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) Miriam Saraiva diz que a iniciativa revela reversão histórica em relação ao “liberalismo arraigado” de presidentes como Ronald Reagan e a família Bush. Por isso, deverá pautar as eleições de novembro para o Congresso.
– Isso deverá ser explorado politicamente – avalia (leia entrevista ao lado).
No início da noite, os Democratas já haviam anunciado ter certeza da aprovação do programa. Em uma votação inicial sobre as regras do processo, venceram a oposição por 224 votos a 206 – o mínimo necessário era de 216 votos. Para ser definitivamente (oficialmente) aprovado, o projeto ainda será encaminhado para sanção da Casa Branca.
Entrevista: “Sinalização para o mundo”
Professora de Relações Internacionais da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), Miriam Saraiva acredita que a reforma da saúde proposta por Obama marca uma mudança no pensamento liberal hegemônico nos Estados Unidos – embora não signifique uma ruptura radical. Confira a entrevista concedida ontem à noite a ZH:
Zero Hora – Qual o impacto das mudanças na área da saúde na mentalidade dos americanos?
Miriam Saraiva – A mentalidade americana é muito liberal. Identifica qualquer intervenção na economia como afronta ao liberalismo.
ZH – Houve restrições até de outros democratas.
Miriam – Quando a proposta foi colocada em votação, teve restrição dos republicanos e de alguns democratas que a veem como um avanço demasiado. Embora, se formos comparar, é pouco intervencionista em relação ao SUS, por exemplo. Mesmo assim, causou problema. Mas o frisson vai passar.
ZH – A implantação do sistema pode acirrar a oposição a Obama?
Miriam – Acho que sim. Qualquer medida nova, que seja um desafio, está sujeita ao êxito ou ao fracasso. Se não for exitosa a princípio, abrirá espaço para muita crítica. Se o sistema não estiver consolidado, será um telhado de vidro para Obama na próxima eleição. Mas acho que terá uma recepção positiva entre a população devido ao grau de desamparo atual.
ZH – A mudança pode trazer reflexos para o resto do mundo?
Miriam – Acho que a mudança não vai deixar os Estados Unidos mais protetores do que muitos outros países já são, na América Latina ou na Europa, onde o bem-estar social é muito arraigado. Mas é uma espécie de sinalização para o mundo. Depois de um Reagan e dois Bush, que apontavam para o liberalismo como a melhor opção para tudo, agora se pensa mais em termos de bem-estar. Desmonta um pouco o discurso liberal, embora não desmonte o liberalismo na prática. Acredito que os Estados Unidos deixam de ser vistos como um exemplo exitoso do liberalismo nessa área.